A União Europeia (UE) investe principalmente nos de segunda geração (2G), produzidos a partir de resíduos orgânicos – em oposição aos de primeira geração (1G), produzidos a partir de culturas a
Entre 2014 e 2020, a Comissão Europeia investiu € 430 milhões para desenvolver biocombustíveis 2G. No entanto, em 2021, esses produtos ainda representavam apenas 0,8% dos 7,5% dos combustíveis renováveis utilizados nos transportes na Europa. Um relatório publicado em dezembro de 2023 pelo Tribunal de Contas da UE externou desconfiança em relação aos biocombustíveis. A conclusão é que a produção de biocombustíveis no bloco não está à altura do financiamento a ela atribuído, enquanto “a dependência de países terceiros aumentou, devido à crescente procura por biomassa”.
Segundo Maurice Jansen, sócio do Boston Consulting Group (BCG), baseado em Helsinque (Finlândia), há duas razões principais para a resistência europeia aos biocombustíveis de primeira geração. A primeira é o fator “Iluc” (mudança indireta no uso da terra, na sigla em inglês): quando o uso de uma terra é convertido para biocombustíveis, indiretamente provoca a transformação de floresta em nova área de agricultura, para suprir a produção que foi abandonada e com a consequente liberação de CO2 na atmosfera. A segunda razão é o fato de que algumas dessas matérias-primas estão competindo com o suprimento de alimentos e, portanto, podem aumentar o preço dos alimentos.
“No entanto, é importante observar que a sustentabilidade real dessas matérias-primas 1G difere substancialmente dependendo do tipo de matéria-prima e dos meios de produção. Algumas matérias-primas 1G podem ter intensidade de carbono muito boa, enquanto outras são realmente ruins”, explica Jansen.
Na União Europeia, a Diretiva sobre Energias Renováveis (RED) II classifica o biodiesel à base de óleo de palma em uma categoria de alto risco de Iluc e determina a redução do seu consumo.
“Os biocombustíveis feitos de matérias-primas avançadas 2G são realmente estimulados na UE, pois há metas mínimas definidas em regulamentações em toda a UE”, acrescenta Jansen. “A principal diferença é que a UE está se concentrando mais em biocombustíveis 2G mais caros e de menor intensidade de carbono, em comparação aos EUA e ao Brasil”, conclui.
A diplomacia brasileira trabalha para evitar a limitação das alternativas de descarbonização”
Artur Milanez, gerente no departamento do Complexo Agroalimentar e de Biocombustíveis do BNDES, diz que a Europa tem privilegiado alternativas de descarbonização que geram maior impacto econômico local, sobretudo pelo elevado investimento em tecnologias ligadas à eletrificação veicular e ao hidrogênio. “No caso dos biocombustíveis, o potencial europeu de se beneficiar dessa alternativa é menor do que o de países como o Brasil e os EUA”, explica.
“Um exemplo prático é a defesa europeia do conceito Iluc, ou seja, na prática assume que, se um hectare de cana, soja ou milho foi usado para biocombustíveis, isso implica em desmatamento em algum outro lugar do mundo. Não é algo mensurável, como a própria Agência Internacional de Energia reconhece”, pontua Milanez.
“A Comissão Europeia previu que estes combustíveis aumentariam a independência energética, mas, na realidade, a dependência de países terceiros aumentou devido à crescente procura pela biomassa. Acontece que o setor dos biocombustíveis compete pelas matérias-primas com outros setores, principalmente o alimentar, mas também o cosmético, o farmacêutico e o de bioplásticos”, afirmam os auditores do Tribunal de Contas da UE.
Para vencer essa oposição e ampliar seus negócios, o Brasil pode investir nos biocombustíveis 2G, segundo Milanez. “Em 2023, o BNDES aprovou R$ 2,6 bilhões para o setor, o maior valor em nove anos, reforçando que o mercado está olhando novos investimentos. Temos buscado apoiar inovação por meio do desenvolvimento tecnológico dos biocombustíveis a partir de resíduos, como são os casos do etanol 2G e do biometano”, conta. “Pode-se dizer que o Brasil está na fronteira tecnológica de ambos, e pode fornecer tanto o próprio biocombustível de resíduo quanto as tecnologias e equipamentos de produção.”
“Em paralelo, a diplomacia brasileira continua trabalhando para demonstrar a necessidade de se evitar a limitação das alternativas de descarbonização”, observa ele, citando a Aliança Global de Biocombustíveis.
Segundo Ricardo Pierozzi, diretor-executivo e sócio do BCG, o Brasil pode desempenhar um papel global de liderança em biocombustíveis, produzindo para mercados locais e de exportação: SAF (combustível de aviação sustentável), HVO (óleo vegetal hidrotratado, um biocombustível avançado que pode substituir o diesel fóssil), etanol, biodiesel, biogás/biometano e BECCS (bioenergia com captura e armazenamento de carbono). “Os recursos naturais permitem que o Brasil produza biocombustíveis em escala e competitividade inigualáveis, o que é ainda mais atraente se reaproveitarmos áreas degradadas em terras produtivas integradas.”
Com mais certificação e mais diálogo vamos avançando. Temos que mostrar [nossas] vantagens”
“O Brasil pode buscar aumentar as oportunidades de exportar biocombustíveis 2G, particularmente etanol, ao mesmo tempo em que reforça os estudos em torno de alternativas 1G, por exemplo, discutindo alavancas de impacto e mitigação para lidar com preocupações de uso da terra e segurança alimentar. O Brasil também pode buscar ativamente parcerias estratégicas com empresas e governos europeus para criar oportunidades para projetos conjuntos, que são essenciais para acelerar a inovação e a produção de biocombustíveis. Além disso, trabalhar em direção à certificação e ao monitoramento equitativos da produção que garantam padrões de qualidade e ambientais corretamente alinhados com as expectativas europeias”, sustenta Pierozzi.
“O estudo ‘Seizing Brazil’s Climate Potential’ [aproveitando o potencial climático do Brasil], conduzido pelo nosso grupo, revelou que a produção de etanol no Brasil deve crescer 3,9% ao ano, enquanto o crescimento do biodiesel deve chegar a 15% em 2025. Além disso, a produtividade da soja deve aumentar em mais de 40% nos próximos dez anos, potencialmente posicionando o Brasil como um player-chave na produção de SAF e HVO até 2030”, acrescenta Pierozzi.
“O biogás também apresenta uma perspectiva promissora, tendo experimentado um crescimento de mais de 20% na produção entre 2015 e 2022. Finalmente, espera-se que a biomassa surja como uma alternativa viável ao carvão”, continua Pierozzi.
Maurice Jansen acrescenta que “a demanda por biocombustíveis 2G da Europa pode crescer de 10 a 20 Mt [milhões de toneladas] somente nesta década, o que representa uma oportunidade de US$ 15 [bilhões] a 30 bilhões”. “Dadas as vantagens de recursos do Brasil, o país uma boa chance de capturar parte desse potencial.”
Luiz Fernando Furlan, ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços do Brasil (2003-2007), conta como conseguiu vencer a resistência americana: “O Brasil é o país que tem a mais longeva experiência de uso de biocombustíveis. Eu me lembro que quando eu era ministro, em 2004, nós fizemos um grande esforço de convencer os americanos a incluir o etanol na mistura da gasolina. E, naquela época, parecia uma coisa impossível, distante. Mas, no final das contas, o então presidente [George W.] Bush olhou isso como um tema estratégico e acabaram tendo a meta de colocar inicialmente 10% de mistura. Hoje, o maior produtor de etanol do mundo são os EUA”, lembra.
Furlan, que defende o acordo UE-Mercosul, é otimista em relação ao mercado europeu: “A experiência brasileira pode ser replicada e não é uma questão de concorrência, é uma questão de olhar para a frente e dizer que não tem outro caminho. Então a Europa poderia transformar uma parte da sua produção e expandir, incluindo os biocombustíveis”. Chairman do Lide, Furlan integrou uma comitiva de líderes empresariais brasileiros que se reuniu este mês com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Paris, para conversar sobre temas econômicos e ambientais.
Vinicius Silveira, vice-presidente do grupo Ambipar, líder global em soluções ambientais, concorda: “O Brasil vai liderar também esta questão de biocombustíveis e é claro que, no concerto das nações, haverá resistência de um e de outro. Cada um, de forma muito legítima, vê os seus interesses. Mas eu acho que é um caminho sem volta este dos biocombustíveis”.
“Com mais certificação e mais diálogo vamos avançando. Temos que ir mostrando as vantagens dos modelos de produção, adaptá-los, inovar”, diz Silveira, que defende uma regulação mundial para a produção de biocombustíveis.
Porém, segundo o relatório “Perspectivas Agrícolas OCDE-FAO 2021-2030”, um fator determinante da demanda futura por biocombustíveis está relacionado à resposta do setor privado a essas medidas. “As indústrias automotiva e outras estão atualmente investindo em veículos elétricos que, dependendo da aceitação dessa tecnologia e das políticas que apoiam sua adoção, podem contribuir para uma potencial redução no uso de biocombustíveis na próxima década e além”, diz o documento.
“Globalmente, esta perspectiva espera que a produção e o consumo de biocombustíveis aumentem em um ritmo muito mais lento durante o período de projeção do que nas décadas anteriores, principalmente como resultado das políticas dos EUA e da UE, que estão reduzindo o suporte a este setor”, conclui o relatório.